terça-feira, 25 de dezembro de 2012

"É o teu rosto ainda que eu procuro
Através do terror e da distância
Para a reconstrução de um mundo puro."

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Tabacaria


"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."


Álvaro de Campos

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

"Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles.
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais.
Para qual fui injusto - eu, que as vou comer a ambas?"


Alberto Caeiro
"Também sei fazer conjecturas.
Há em cada coisa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma coisa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrem.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é alma
E têm a consciência na própria carne divina."


Alberto Caeiro

É Tão Suave A Fuga Deste Dia

"É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,

Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prêmio
De nos deixarem ser

Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,

Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.

E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

Como quem guarda a c'roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,

Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo."



Ricardo Reis

Tenho Mais Almas Que Uma

"Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo."



Ricardo Reis

Colhe O Dia, Porque És Ele

"Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.

Por que tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.

Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele."



Ricardo Reis

O Quê? Valho Mais Que Uma Flor

"O quê? Valho mais que uma flor
Porque ela não sabe que tem cor e eu sei,
Porque ela não sabe que tem perfume e eu sei,
Porque ela não tem consciência de mim e eu tenho consciência dela?
Mas o que tem uma coisa com a outra
Para que seja superior ou inferior a ela?
Sim tenho consciência da planta e ela não a tem de mim.
Mas se a forma da consciência é ter consciência, que há nisso?
A planta, se falasse, podia dizer-me: E o teu perfume?
Podia dizer-me: Tu tens consciência porque ter consciência é uma qualidade humana
E só não tenho uma porque sou flor senão seria homem.
Tenho perfume e tu não tens, porque sou flor...

Mas para que me comparo com uma flor, se eu sou eu
E a flor é a flor?

Ah, não comparemos coisa nenhuma, olhemos.
Deixemos análises, metáforas, símiles.
Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa.
Nenhuma coisa lembra outra se repararmos para ela.
Cada coisa só lembra o que é
E só é o que nada mais é.
Separa-a de todas as outras o facto de que é ela.
(Tudo é nada sem outra coisa que não é)."


Alberto Caeiro
 

Se Às Vezes Digo Que AS Flores Sorriem

"Se às vezes digo que as flores sorriem
E se eu disser que os rios cantam,
Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores
E cantos no correr dos rios...
É porque assim faço mais sentir aos homens falsos
A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.
Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes
À sua estupidez de sentidos...
Não concordo comigo mas absolvo-me,
Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,
Porque há homens que não percebem a sua linguagem,
Por ela não ser linguagem nenhuma."



Alberto Caeiro

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

When You Are Old


"When you are old and gray and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face among a crowd of stars."


William Butler Yeats

Politics


"How can I, that girl standing there,
My attention fix
On Roman or on Russian
Or on Spanish politics?
Yet here's a travelled man that knows
What he talks about,
And there's a politician
That has read and thought,
And maybe what they say is true
Of war and war's alarms,
But O that I were young again
And held her in my arms!"


William Butler Yeats

After Long Silence


"Speech after long silence; it is right,
All other lovers being estranged or dead,
Unfriendly lamplight hid under its shade,
The curtains drawn upon unfriendly night,
That we descant and yet again descant
Upon the supreme theme of Art and Song:
Bodily decrepitude is wisdom; young
We loved each other and were ignorant."


William Butler Yeats

He Remembers Forgotten Beauty


"When my arms wrap you round I press
My heart upon the loveliness
That has long faded from the world;
The jewelled crowns that kings have hurled
In shadowy pools, when armies fled;
The love-tales wrought with silken thread
By dreaming ladies upon cloth
That has made fat the murderous moth;
The roses that of old time were
Woven by ladies in their hair,
The dew-cold lilies ladies bore
Through many a sacred corridor
Where such grey clouds of incense rose
That only God's eyes did not close:
For that pale breast and lingering hand
Come from a more dream-heavy land,
A more dream-heavy hour than this;
And when you sigh from kiss to kiss
I hear white Beauty sighing, too,
For hours when all must fade like dew,
But flame on flame, and deep on deep,
Throne over throne where in half sleep,
Their swords upon their iron knees,
Brood her high lonely mysteries."


William Butler Yeats

He Bids His Beloved Be At Peace


"I hear the Shadowy Horses, their long manes a-shake,
Their hoofs heavy with tumult, their eyes glimmering white;
The North unfolds above them clinging, creeping night,
The East her hidden joy before the morning break,
The West weeps in pale dew and sighs passing away,
The South is pouring down roses of crimson fire:
O vanity of Sleep, Hope, Dream, endless Desire,
The Horses of Disaster plunge in the heavy clay:
Beloved, let your eyes half close, and your heart beat
Over my heart, and your hair fall over my breast,
Drowning love's lonely hour in deep twilight of rest,
And hiding their tossing manes and their tumultuous feet."


William Butler Yeats

The Song Of Wandering Aengus


"I went out to the hazel wood,
Because a fire was in my head,
And cut and peeled a hazel wand,
And hooked a berry to a thread;

And when white moths were on the wing,
And moth-like stars were flickering out,
I dropped the berry in a stream
And caught a little silver trout.

When I had laid it on the floor
I went to blow the fire a-flame,
But something rustled on the floor,
And some one called me by my name:
It had become a glimmering girl
With apple blossom in her hair
Who called me by my name and ran
And faded through the brightening air.

Though I am old with wandering
Through hollow lands and hilly lands,
I will find out where she has gone,
And kiss her lips and take her hands;
And walk among long dappled grass,
And pluck till time and times are done
The silver apples of the moon,
The golden apples of the sun."


William Butler Yeats

The Lover Tells Of The Rose In His Heart


"All things uncomely and broken, all things worn out and old,
The cry of a child by the roadway, the creak of a lumbering cart,
The heavy steps of the ploughman, splashing the wintry mould,
Are wronging your image that blossoms a rose in the deeps of my heart.

The wrong of unshapely things is a wrong too great to be told;
I hunger to build them anew and sit on a green knoll apart,
With the earth and the sky and the water, re-made, like a casket of gold
For my dreams of your image that blossoms a rose in the deeps of my heart."


William Butler Yeats

The Man Who Dreamed Of Faeryland


"He stood among a crowd at Drumahair;
His heart hung all upon a silken dress,
And he had known at last some tenderness,
Before earth took him to her stony care;
But when a man poured fish into a pile,
It seemed they raised their little silver heads,
And sang what gold morning or evening sheds
Upon a woven world-forgotten isle
Where people love beside the ravelled seas;
That Time can never mar a lover's vows
Under that woven changeless roof of boughs:
The singing shook him out of his new ease.

He wandered by the sands of Lissadell;
His mind ran all on money cares and fears,
And he had known at last some prudent years
Before they heaped his grave under the hill;
But while he passed before a plashy place,
A lug-worm with its grey and muddy mouth
Sang that somewhere to north or west or south
There dwelt a gay, exulting, gentle race
Under the golden or the silver skies;
That if a dancer stayed his hungry foot
It seemed the sun and moon were in the fruit:
And at that singing he was no more wise.

He mused beside the well of Scanavin,
He mused upon his mockers: without fail
His sudden vengeance were a country tale,
When earthy night had drunk his body in;
But one small knot-grass growing by the pool
Sang where - unnecessary cruel voice -
Old silence bids its chosen race rejoice,
Whatever ravelled waters rise and fall
Or stormy silver fret the gold of day,
And midnight there enfold them like a fleece
And lover there by lover be at peace.
The tale drove his fine angry mood away.

He slept under the hill of Lugnagall;
And might have known at last unhaunted sleep
Under that cold and vapour-turbaned steep,
Now that the earth had taken man and all:
Did not the worms that spired about his bones
Proclaim with that unwearied, reedy cry
That God has laid His fingers on the sky,
That from those fingers glittering summer runs
Upon the dancer by the dreamless wave.
Why should those lovers that no lovers miss
Dream, until God burn Nature with a kiss?
The man has found no comfort in the grave."


William Butler Yeats

Down by the Salley Gardens


"Down by the salley gardens my love and I did meet;
She passed the salley gardens with little snow-white feet.
She bid me take love easy, as the leaves grow on the tree;
But I, being young and foolish, with her would not agree.

In a field by the river my love and I did stand,
And on my leaning shoulder she laid her snow-white hand.
She bid me take life easy, as the grass grows on the weirs;
But I was young and foolish, and now am full of tears."


William Butler Yeats

Sonnet 57


"Being your slave, what should I do but tend
Upon the hours and times of your desire?
I have no precious time* at all to spend,
Nor services to do, till you require.
Nor dare I chide the world-without-end hour
Whilst I, my sovereign, watch the clock for you,
Nor think the bitterness of absence sour
When you have bid your servant once adieu;
Nor dare I question with my jealous thought
Where you may be, or your affairs suppose,
But, like a sad slave, stay and think of nought
Save, where you are how happy you make those.
So true a fool is love that in your will,
Though you do any thing, he thinks no ill."


William Shakespeare

Sonnet 31


"Thy bosom is endeared with all
Which I by lacking have supposed dead,
And there reigns love and all love's loving parts,
And all those friends which I thought buried.
How many a holy and obsequious tear
Hath dear religious love stol'n from mine eye
As interest of the dead, which now appear
But things removed that hidden in thee lie!
Thou art the grave where buried love doth live,
Hung with the trophies of my lovers gone,
Who all their parts of me to thee did give;
That due of many now is thine alone:
Their images I loved I view in thee,
And thou, all they, hast all the all of me."


William Shakespeare

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Nada

"Nada, nem sequer o verão
Está completo. Menos ainda o colar
De sílabas que, desvelado,
Te ponho à roda da cintura.
Nunca me pediste mais, nunca
Te dei outra coisa.
Quando juntamos as mãos esquecemos
Que somos culpados da nossa inocência.
E sorrimos, alheios
Ao sol que declina, à estrela
Do norte que sabemos no fim.
O privilégio da vida é este
Silêncio musical que do teu olhar
Cai nos meus olhos
E regressa a ti acrescentado
Pela luz da manhã varrendo o mar."


Eugénio de Andrade

Contraponto

"Oiço-a ainda longe, a neve.
Vai chegar um dia com a luz de novembro,
Antes passará pelos teus lábios.
E serás condescendente,
A ponto de lhe indicares o caminho
Mais longo,
O que leva ao bosque onde
Te peguei na mão
Sem coragem para a levar à boca.
A neve tem esse lado acolhedor
De farol no escuro.
Antes de nos soterrar o coração."


Eugénio de Andrade

Num Exemplar Das Geórgicas

"Os livros. A sua cálida,
Eterna, serena pele. Amorosa
Companhia. Dispostos sempre
A partilhar o sol
Das suas águas. Tão dóceis,
Tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
Branca e vegetal e cerrada
Melancolia. Amados
Como nenhuns outros companheiros
De alma. Tão musicais
No fluvial e transbordante
Ardor de cada dia."


Eugénio de Andrade

Casa Do Mundo

"A diminuta
Flor da candeia,
Na mesa o pão o vinho
A rosa,
A súbita
Brancura da cama aberta -
A eternidade
Milimetricamente
A dividir contigo."


Eugénio de Andrade

domingo, 29 de julho de 2012

Despedida

"Junho chegara ao fim, a magoada
Luz dos jacarandás, que me pousava
Nos ombros, era agora o que tinha
Para repartir contigo,
E um coração desmantelado
Que só aos gatos servirá de abrigo."


Eugénio de Andrade

Contigo

"Sou eu, sou eu que não durmo,
Contigo nos sentidos.
Sinto-me caminhar sobre as águas
Do meu corpo - não sejas queimadura
Nem boca do deserto.
Nenhum amor é estéril, um filho
Pode ser uma estrela ou um verso."


Eugénio de Andrade

Sem Memória

"Haverá para os dias sem memória
Outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
Manhã rente às colinas,
A luz do corpo levada aos lábios,
Os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
Onde não há lembrança de ti?"


Eugénio de Andrade

O Desejo

"O desejo, o aéreo e luminoso
E magoado desejo latia ainda;
Não sei bem em que lugar
Do corpo em declínio mas latia;
Bastava abrir os olhos para ouvir
O nasalado ardor da sua voz:
Era a manhã trepando às dunas,
Era o céu de cal onde o sul começa,
Era por fim o mar à porta - o mar,
O mar, pois só o mar cantava assim."


Eugénio de Andrade

Sem Ti

"É um fardo aos ombros
O corpo, sem ti.
Até o amarelo
Dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
Na arte de olhar
A luz é cúmplice da pele."


Eugénio de Andrade

Mesmo Em Ruína

"É tão antiga a chuva na vidraça.
Vem do pequeno bosque onde o verão
Mordia os flancos da água.
O que no coração tarda
A morrer é a luz mesmo em ruína.
A sumptuosa seda do outono.
A doçura, o sal da língua."


Eugénio de Andrade

Sobre A Terra

"Sei que estou vivo e cresço sobre a terra.
Não porque tenha mais poder,
Nem mais saber, nem mais haver.
Como lábio que suplica outro lábio,
Como pequena e branca chama
De silêncio,
Como sopro obscuro do primeiro crepúsculo,
Sei que estou vivo, vivo
Sobre o teu peito, sobre os teus flancos,
E cresço para ti."


Eugénio de Andrade

A Sereia Do Báltico


"Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato.
Tenho nove anos e vivo no Rossio. Vou amachucando cuidadosamente uma folha de jornal até fazer dela uma bola, passo-lhe à roda um cordel, dou-lhes três ou quatro voltas apertadas, e acabo por deixar uma longa ponta de quase dois metros. É com esta arma no bolso que saio à rua, e raro é o dia em que não regresso com um gato. Não é difícil: 
atiro a bola ao primeiro bicho que descubro e vou puxando o fio. Nenhum resiste. O gato pula, corre atrás da bola, nunca mais pára até que chegamos a casa; então aos mais pequenos, é preciso ajudá-los nas escadas.
Às vezes, minha mãe dá-lhes um pouco de leite, e leva-os depois; outras, se está maldisposta, obriga-me a ir pô-los no sítio onde os encontrei. Não sei como o Bibi escapou. Teria a mãe sido cativada pela sua beleza - era um pequeno tigre de grandes olhos cor de bronze - eu pensaria que, se eu tivesse um gato, perderia aquela mania de trazer para casa todo o maltrapilho? Não sei, a verdade é que foi ficando, e se a relação dele com a mãe nos primeiros tempos não foi feliz, comigo poderia falar-se em idílio: era eu que lhe dava de comer, dormia aos meus pés, conhecia o meu toque de campaínha e, embora tivesse garras e dentes bem afiados, nunca ninguém me viu mordido ou arranhado.
Cresceu muito, e era elegante de seu natural, a cabeça levantada, atenta, como se escutasse qualquer rumor distante.
E não sei de quem melhor soubesse administrar o silêncio.
É preciso dizer que o bicho chegara a casa com maus hábitos. A mãe pusera-lhe um caixote com serradura a um canto da casa de banho para as suas necessidades, mas ele preferia fazê-las na banheira e até no lavatório,
justamente sobre o ralo. Quando ouvia a mãe dizer: "Raios partam o gato!", já sabia o que, mais uma vez, acontecera. Procurava-o a seguir no meu quarto (já disse, creio eu, que o Bibi passava o tempo deitado na minha cama), e levava-o à força com ela. Entre injúrias e palmadas, ouvia o gato bufar e miar, até conseguir escapar-se e meter-se debaixo da minha cama, depois de alguma arranhadela, pois o castigo humilhava-o: a mãe esfregava-lhe invariavelmente o focinho na porcaria que ele depusera, talvez como oferenda, na banheira ou no lavatório. Depois aproximava-se de mim, fazia-me queixa: "Se não gostasse tanto dele, já teria tido o destino dos outros". Eu olhava-lhe a mão arranhada, pegava nela, fazia-lhe uma festa. "Ele também é louco por ti, mas é um porcalhão", insistia. Faço-lhe uma festa, ela sorri, e depois vai à sua vida. Era a minha vez de procurar o Bibi, que se encontrava ainda debaixo da cama: "Vem cá, meu porcalhãozito, ela já se foi embora, já não te bate mais. Anda aqui, minha sereia do Báltico: não há maneira de teres juízo, dá cá a pata". Demorava um pouco a sair, mas depois lá vinha, acabando por dar uma turrinha na mão que o procurava no escuro, consentia que o pusesse no colo, lhe fizesse alguns mimos. Não tardava a correr atrás de mim, por aquele corredor que nunca mais acabava, nunca mais acabava."


Eugénio de Andrade

Fábula


"Estavam ali diante dos meus olhos: era terrível e ao mesmo tempo fascinante.
Ao princípio pensei que ele a estava a matar, logo a seguir percebi que não, que talvez ambos estivessem a morrer, só depois qualquer apelo distante se fez carne em mim. Então todo eu fiquei amarrado aos seus gestos, àquela respiração fatigada e difícil, àquele balbucio que lhes saía ralo da boca.
Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco de agosto. Mas a terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu o leito do ribeiro, morreu no alto dos amieiros. Por fim, a paz desceu ao mundo.
Maria olhava o carpinteiro com olhos rasos de espanto, como quem tivesse perdido tudo naquele instante. Lentamente passou-lhe a mão pelo cabelo, numa carícia tímida, e começou a chorar. O carpinteiro olhou-a também, mas os seus olhos eram diferentes, eram os olhos da própria solidão.
Sem uma palavra, o homem ergueu-se e começou a mijar. A rapariga levantou-se a seguir e, de costas, parecia limpar as pernas. Eu escondi-me melhor atrás dos amieiros, não vi mais nada. Senti os passos de ambos afastarem-se, cada um para seu lado, com o coração apertado. De um salto, atirei-me à cama que os seus corpos haviam feito na areia, respirando avidamente, como se o ar pudesse trazer-me mais do que o cheiro acidulado da urina, e deixei de perceber os passos já distanciados, o estalar dos ramos secos aqui e ali, para só ouvir o silêncio. O doloroso, insuportável silêncio."


Eugénio de Andrade

Corpo

"O mar - sempre que toco
Um corpo é o mar que sinto
Onda a onda
Contra a palma da mão.
Vésper está agora
Tão próxima que já não posso
Perder-me naquela infatigável
Ondulação."


Eugénio de Andrade

Os Pêssegos

"Lembram adolescentes nus:
A doirada pele das nádegas
Com marcas de carmim, a penugem
Leve, mais encrespada e fulva
Em torno do sexo distendido
E fácil, vulnerável aos desejos
De quem só o contempla e não ousa
Aproximar dos flancos matinais
A crepuscular lentidão dos dedos."


Eugénio de Andrade

O Sorriso

"Creio que foi o sorriso,
O sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
Lá dentro, apetecia
Entrar nele, tirar a roupa, ficar
Nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."


Eugénio de Andrade

Os Jacarandás

"Em meados de Junho os jacarandás de Lisboa estão em flor, a sua luz fende a pupila, acaricia o dorso da sombra. É então que - sei lá se pela última vez - a inocência volta a entrar na minha vida. Olhos, mãos, alma, tudo é novo - recomeço a prodigalizar alegria, uma alegria que não procura palavras porque o seu reino não é o da expressão. Digamos que esta nova experiência, a que não quero dar nome, não se preocupa em interrogar, talvez por já não ser tempo de dúvidas, ou então por não lhe dizerem respeito essas verdades últimas, cegas como facas.

Não é um poema de obediência o que me proponho nestas linhas; trata-se doutra coisa: levar à boca fresca do ar o ardor das areias queimadas. Mas sem palavras, sem palavras."


Eugénio de Andrade

Casa No Sol

"A casa é branca, branca de cal (que de todos os brancos é o único que é branco), debruada de azul, por ser à beira-mar a cor da alegria. Branca e fechada - não vá o sol que arde nos telhados penetrar insidiosamente por alguma fresta e incendiar o silêncio melindroso da alcova. A obscuridade quase não consente a contemplação do rosto infantil que ali dorme até o sol ter amansado. Só então desperta e se refugia nos braços que já o esperam.
Por esse rapazito serias capaz de correr o mundo a pé-coxinho, se ele to pedisse, ou entrar pelo buraco da fechadura só para o veres dormir."


Eugénio de Andrade

Entre O Primeiro E O Último Crepúsculo

"Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último, sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar."


Eugénio de Andrade

Fadiga

"Falar é fatigante. De todas as estrelas, a mais rouca e ácida é também a mais próxima. O inverno convida à promiscuidade, os olhos acabam por cair no curral - quem não amou um porco?
Nenhum lugar de amor é triste, mesmo uma estrebaria pode ser o paraíso."


Eugénio de Andrade

M.

"Todos os dias as suas águas pequenas afloram os meus olhos. E eles, que morriam de inanidade, ganham então súbitos brilhos, abrindo respiradouros para a vida. A pureza, quando não é um olhar infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis. Raramente se alcança, e quando isso acontece já os nossos olhos estão secos - como poderá tão melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas águas, por mais exíguas, me são tão preciosas."


Eugénio de Andrade

Ainda Sobre A Pureza

"Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo de morte é o mais perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e incendiar a cidade."


Eugénio de Andrade
"A claridade coroa-se de cinza, eu sei:
É sempre a tremer que levo o sol à boca."


Eugénio de Andrade

sábado, 14 de julho de 2012

Sílaba Sobre Sílaba

"Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do nascer ao pôr do sol."


Eugénio de Andrade
"Passamos pelas coisas sem as ver,
Gastos como animais adormecidos.
Se alguém chama por nós não respondemos.
Se alguém nos pede amor não estremecemos.
Como frutos de sombra sem sabor
Vamos caindo ao chão apodrecidos."


Eugénio de Andrade

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Rosto Afogado

"Para sempre um luar de naufrágio
Anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
Entre retratos e vendedores ambulantes,
Entre cigarros e gente sem destino,
Flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
Seria pela curva doce dos teus olhos,
Pela tua fronte de bosque adormecido,
Pela tua voz onde sempre amanhecia,
Pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
Era um rumor de festa,
Pela tua boca onde os peixes se esqueciam
De continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
Na parte mais débil do meu corpo,
Com uma espinha de silêncio
Atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
De ti quando acaso me debruço
Nuns olhos subitamente acesos
Ao dobrar duma esquina,
Na boca dos anjos embriagados
De tanta solidão bebida pelos bares,
Nas mãos levemente adolescentes
Pousadas na indolência dos joelhos.

Quem me dirá que não é verdade
O teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
De sombra em sombra, nas ruas da cidade?

Ninguém te conheceu,
Ninguém viu romper a luz na tua cama,
Ninguém sabe, ninguém,
Que o teu corpo, continente selvagem,
De desvelava por uma pedra branca
Atirada contra o nevoeiro.

Por isso escrevo esta elegia
Como quem oferece a luz dos olhos;
Por isso canto o teu rosto afogado
Como quem canta um funeral de espigas."


Eugénio de Andrade

O Amor

"Estou a amar-te como o frio
Corta os lábios.

A arrancar a raiz
Ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
De saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
A boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
O itinerário da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável."


Eugénio de Andrade

Obscuro Domínio

"Amar-te assim desvelado
Entre barro fresco e ardor.
Sorver entre lábios fendidos
O ardor da luz orvalhada.

Deslizar pela vertente
Da garganta, ser música
Onde o silêncio aflui
E se concentra.

Irreprimível queimadura
Ou vertigem desdobrada
Beijo a beijo,
Brancura dilacerada.

Penetrar na doçura da areia
Ou do lume,
Na luz queimada
Da pupila mais azul,

No oiro anoitecido
Entre pétalas cerradas,
No alto e navegável
Golfo do desejo,

Onde o furor habita
Crispado de agulhas,
Onde faça sangrar
As tuas águas nuas."


Eugénio de Andrade

Vaguíssimo Retrato

"Levar-te à boca,
Beber a água
Mais funda do teu ser -
Se a luz é tanta,
Como se pode morrer?"


Eugénio de Andrade

A Palmeira Jovem

"Como a palmeira jovem
Que Ulisses viu em Delos, assim

Esbelto era o dia
Em que te encontrei;

Assim esbelta a noite
Em que te despi,

E como um potro na planície nua
Em ti entrei."


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Eternity

"He who binds to himself a joy
Does the winged life destroy;
But he who kisses the joy as it flies
Lives in eternity's sun rise."


William Blake 
"If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is: infinite."


William Blake

O Navio De Espelhos

"O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão não traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo"


Mário Cesariny

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Poema 14 ou Mis Palabras Llovieron Sobre Ti Acariciándote

"Juegas todos los días con la luz del universo.
Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua.
Eres más que esta blanca cabecita que aprieto
como un racimo entre mis manos cada día.

A nadie te pareces desde que yo te amo.
Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas.
Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur?
Ah déjame recordarte cómo eras entonces, cuando aún no existías.

De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada.
El cielo es una red cuajada de peces sombríos.
Aquí vienen a dar todos los vientos, todos.
Se desviste la lluvia.

Pasan huyendo los pájaros.
El viento. El viento.
Yo sólo puedo luchar contra la fuerza de los hombres.
El temporal arremolina hojas oscuras
y suelta todas las barcas que anoche amarraron al cielo.

Tú estás aquí. Ah tú no huyes.
Tú me responderás hasta el último grito.
Ovíllate a mi lado como si tuvieras miedo.
Sin embargo alguna vez corrió una sombra extraña por tus ojos.

Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas,
y tienes hasta los senos perfumados.
Mientras el viento triste galopa matando mariposas
yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela.

Cuanto te habrá dolido acostumbrarte a mí,
a mi alma sola y salvaje, a mi nombre que todos ahuyentan.
Hemos visto arder tantas veces el lucero besándonos los ojos
y sobre nuestras cabezas destorcerse los crepúsculos en abanicos girantes.

Mis palabras llovieron sobre ti acariciándote.
Amé desde hace tiempo tu cuerpo de nácar soleado.
Hasta te creo dueña del universo.
Te traeré de las montañas flores alegres, copihues,
avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo
lo que la primavera hace con los cerezos."


Pablo Neruda

sexta-feira, 8 de junho de 2012


"Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar."
 
Alberto Caeiro
“… a verdade está escondida num poço, mas quando lhe vem o capricho de se mostrar, toda a gente fica surpreendida e fixa sobre ela os olhares, porque surge completamente nua, é mulher e é bela.”


Giacomo Casanova

sábado, 26 de maio de 2012

Guaranteed


"On bended knee is no way to be free
lifting up an empty cup I ask silently
that all my destinations will accept the one that's me
so I can breath

Circles they grow and they swallow people whole
half their lives they say goodnight to wive's they'll never know
got a mind full of questions and a teacher in my soul
so it goes...

Don't come closer or I'll have to go
Holding me like gravity are places that pull
If ever there was someone to keep me at home
It would be you...

Everyone I come across in cages they bought
they think of me and my wandering
but I'm never what they thought
got my indignation but I'm pure in all my thoughts
I'm alive...

Wind in my hair, I feel part of everywhere
underneath my being is a road that disappeared
late at night I hear the trees
they're singing with the dead
overhead...

Leave it to me as I find a way to be
consider me a satelite for ever orbiting
I knew all the rules but the rules did not know me
guaranteed..."


Eddie Vedder

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Puedo Escribir Los Versos Más Tristes Esta Noche


"Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos."
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.
En las noches como esta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.
Oir la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche esta estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque este sea el ultimo dolor que ella me causa,
y estos sean los ultimos versos que yo le escribo."


Pablo Neruda

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Invictus


"Out of the night that covers me,
Black as the Pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll.
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul."


William Ernest Henley

domingo, 29 de abril de 2012

Sonnet 29


"When, in disgrace with fortune and men's eyes,
I all alone beweep my outcast state
And trouble deaf heaven with my bootless cries
And look upon myself and curse my fate,

Wishing me like to one more rich in hope,
Featured like him, like him with friends possess'd,
Desiring this man's art and that man's scope,
With what I most enjoy contented least;

Yet in these thoughts myself almost despising,
Haply I think on thee, and then my state,
Like to the lark at break of day arising

From sullen earth, sings hymns at heaven's gate;
For thy sweet love remember'd such wealth brings
That then I scorn to change my state with kings."


William Shakespeare

quarta-feira, 25 de abril de 2012

"Um amigo é alguém cuja a presença se gosta, por quem se tem admiração, em cuja companhia se aprende. Luís Bernardo admirava tudo em David: a sua capacidade de tirar sempre partido de qualquer situação, o prazer com que vivia a vida e tudo o que viesse, a calma e a determinação com que encaixava os golpes do destino e lhes fazia frente, a simplicidade linear do seu código moral de conduta, a sua absoluta ausência de angústia face ao esboroar do tempo, porque ele desconhecia em absoluto a noção de tempo perdido e cada dia de vida era para ele uma dádiva, que nenhum desgosto e nenhum revés poderiam toldar.



Miguel Sousa Tavares
em "Equador"

terça-feira, 24 de abril de 2012

“No meu modo de ver quando sementes de carvalho e de castanheira caem lado a lado, uma delas não se retrai para dar vez à outra; pelo contrário, cada uma segue as suas próprias leis, e brotam, crescem e florescem da melhor maneira possível, até que uma por acaso acaba superando e destruindo a outra. Se uma planta não pode viver de acordo com a sua natureza, então ela morre; o mesmo acontece com um homem.”


Henry David Thoreau
em "Desobediência Civil"

"It is only necessary to have courage, for strength without self-confidence is useless."
 
 
Giacomo Casanova

Spoiler de Rio das Flores

“Diogo fez uma pausa profunda. Olhou-a assim, como sempre a sonhara, como sempre a tinha guardado nos seus pensamentos. Sabia agora que nada tinha sido fútil, no longo caminho que o trouxera até ali. E, portanto, não havia mais lugar para dissimulações. Podia tudo perder ou tudo ganhar, podia até não saber se tudo queria perder ou ganhar. Mas chegava ao fim uma caminhada, a travessia de um oceano, longos dias e longas noites de saudades sepultadas na cumplicidade do travesseiro. Tudo isso chegara ao fim, agora: fosse qual fosse o desfecho, nada mais continuaria suspenso para sempre. Ele falaria e ela escolheria o futuro de ambos. Suspirou fundo, tranquilo com a sua consciência: poucos homens dariam tanto a uma mulher, poucos seriam tão fiéis aos seus sentimentos.
- Não me posso casar contigo, face à lei e à Igreja porque sou casado, como sabes. Mas, em tudo o resto, serás a minha mulher.
- E porquê?
- Porquê?
- Porquê que eu serei tua mulher em tudo o resto?
- Porque te amo.
Ela distendeu-se, enfim. Abriu os braços para ele e nesse momento exacto, ele soube que por mais anos que vivesse, nunca esqueceria esse instante em que ela o chamou e se lhe entregou.
- Vem cá! Tanto tempo que lhe esperei!”


Miguel Sousa Tavares
em "Rio Das Flores"

sábado, 21 de abril de 2012

“ Os espíritos fortes que dizem que a oração não serve para coisa nenhuma, não sabem o que dizem: sei que depois de rezar a Deus me achava sempre com mais força. Mais não é preciso para reconhecer a utilidade da oração. Há quem pretenda que esse aumento de força é um efeito natural da matéria tornada mais vigorosa pela confiança que ela obteve por via da oração, e que tal acontece sem que Deus tome parte no processo. Respondo que, uma vez que se admite Deus, Deus toma parte em todas as coisas. Os que têm uma religião dispõem de muitos recursos que os incrédulos não têm. Os primeiros compreendem pouco do que se passa, mas os segundos não compreendem absolutamente nada.”


Giacomo Casanova

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Chão É Cama Para O Amor Urgente


"O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama."


Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 19 de abril de 2012

“ Um homem que dorme tranquilamente na prisão, não está na prisão durante o seu doce sono, e o escravo enquanto dorme não sabe que o é, tal como os reis enquanto dormem não governam. Há-de portanto considerar aquele que o acorda como um carrasco que vem privá-lo da sua liberdade e mergulhá-lo de novo na miséria. Acrescente-se que vulgarmente o prisioneiro que dorme sonha que está em liberdade e que essa ilusão lhe faz as vezes da realidade.”


Giacomo Casanova

terça-feira, 17 de abril de 2012

The Severed Garden

"Wow I'm sick of doubt
Live in the light of certain
South
Cruel Bindings
The servants have the power
dog-men & their mean women
pulling poor blankets over
our sailors
I'm sick of dour faces
Staring at me from the T.V.
Tower. I want roses in
my garden bower, dig?
Royal babies, rubies
must now replace aborted
Strangers in the mud
These mutants, blood-meal
For the plant that's plowed
They are waiting to take us into
The Severed Garden

Do you know how pale and wanton thrillful
comes death on a strange hour
unannounced, unplanned for
like scaring over-friendly guest you've
Brought to bed
Death makes angels of us all
& gives us wings
where we once had shoulders
smooth as raven's
claws

No more money, no more fancy dress
This other kingdom seems by far the best
Until it's other jaw reveals incest
I will not go
Prefer a Feast of Friends
To the Giant Family"


Jim Morrison

domingo, 15 de abril de 2012

Ausência


"Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
                                                             
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim."


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Eternamente


"E escrevi o teu nome e o teu número de telefone numa página da agenda do mês de Fevereiro. E, ao escrevê-lo, sabia que era uma despedida, mas todo o mês de Março nos arrastámos na despedida, como caranguejos na maré vazia. Sem ti, lancei outras raízes, construí pátios e terraços, fontes cujo som deveria apagar todos os silêncios, plantei um pomar com cheiro a damasco, mandei fazer um banco de cal à roda de uma árvore para olhar as estrelas no céu, um caminho no meio do olival por onde o luar pousaria à noite, abóbadas de tijolo imaginadas pelo mais sábio dos arquitectos e até teias de aranha suspensas no tecto, como se vigiassem a passagem do tempo. Nada disso tu viste, nada te contei, nada é teu. Sozinhos, eu e a aranha pendurada na teia, contemplámo-nos longamente, como quem se descobre, como quem se recolhe, como quem se esconde. Foi assim que vi desfilar anos, as paredes escurecendo, um pó de tijolo pousando entre as páginas dos mesmos livros que fui lendo, repetidamente. Heatcliff e Catarina Linton destroçados outra vez pela minúcia do tempo.
Como explicar-te tudo isto se te tornou alheio, como tudo te pareceria agora estranho, como nada do que foi teu vigia o teu hipotético regresso? Ulisses não voltará a Ítaca e Penelope alguma desfará de noite a teia que te teceste.
E arranquei a página da agenda com o teu nome e o teu número de telefone. Veio a seguir Abril e depois o Verão. Vi nascer a flor, a tremocilha e das buganvílias adormecidas, vi rebentar o azul dos  jacarandás em Junho, vi noites de lua cheia em que todos os animais nocturnos se chamavam rãs, corujas e grilos, e um espesso calor sobre a devassidão da cidade. E já nada disto, juro, era teu.
E foi assim que descobri que todas as coisas continuam para sempre, como um rio que corre ininterruptamente para o mar, por mais que façam para o deter.
Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
E a tua voz ouço-o agora vinda de longe, como o som do mar imaginado dentro de um búzio. Vejo-te através da espuma quebrada na areia das praias, num mar de Setembro, com cheiro a algas e a iodo. E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre."


Miguel Sousa Tavares

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Destruição

"Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem:
Um se beija no outro, reflectido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente. "


Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 11 de abril de 2012

“O maior alívio que pode ter um homem atormentado é sentir a esperança de em breve sair do tormento. Contempla o feliz instante em que verá o fim da sua desgraça; persuade-se de que tal instante não demorará muito a vir e seria capaz de tudo fazer para saber a hora precisa em que esse instante chegará. Mas não há ninguém que possa saber em que instante se dará um facto que depende da vontade de um outro, a menos que lho haja dito esse outro. Porém, o homem que se tornou impaciente e cujas forças se foram esgotando acaba por acreditar que é possível, por algum meio oculto, descobrir o dito momento. Deus, diz ele, tem que saber quando chegará esse momento, e Deus pode permitir que a hora desse instante me seja revelada por um sortilégio. Logo, que o curioso faz este raciocínio, não hesita em consultar a fortuna, disposto ou não a julgar infalível tudo o que esta possa dizer-lhe.”


Giacomo Casanova

terça-feira, 10 de abril de 2012

segunda-feira, 9 de abril de 2012

domingo, 8 de abril de 2012

“As pessoas em geral, e especialmente os homens, não foram ensinadas a viver a radiosa epopeia da fragilidade. Ninguém nos disse que é nessa espécie de fragilidade que está a nossa marca e a nossa grandeza e que só ela nos desvenda o fantástico universo da ternura.”


António Alçada Baptista

sábado, 7 de abril de 2012

Excerto de As Minhas Fugas Das Prisões De Veneza

“… é uma solidão que desespera; mas só se pode sabê-lo depois de se passar pela experiência. A partir de então compreendi como se enganam aqueles que atribuem ao espírito do homem uma certa força: tal força é apenas relativa e o homem que a si mesmo se estudasse com rigor encontraria em si somente debilidade. Compreendi que, embora só raramente aconteça que o homem atinja a loucura, é contudo verdade que tal coisa não é difícil. O nosso juízo é como a pólvora, que sendo embora fácil de inflamar só se inflama quando se lhe pega o fogo; ou como um copo que nunca se partirá a não ser que o partam.”


Giacomo Casanova

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Excerto de Para O David Crockett



"Quando era pequeno - muito pequeno, talvez oito ou nove anos - lembro-me de estar deitado na banheira, em casa dos meus pais, a ler um livro de quadradinhos. Era uma aventura do David Crockett, o desbravador do Kentucky e do Tenessee, que haveria de morrer na mítica batalha do Forte Álamo. Nessa história, o David Crockett era emboscado por um grupo de índios, levava com um machado na cabeça, ficava inconsciente e era levado prisioneiro para o acampamento índio. Aí, dentro de uma tenda, havia uma índia muito bonita - uma «skaw», na literatura do Far-West - que cuidava dele, dia e noite, molhando-lhe a testa com água, tratando das suas feridas e vigiando o seu coma. E, a certa altura, ela murmurava para o seu prostrado e inconsciente guerreiro: «não te deixarei morrer, David Crockett!»
Não sei porquê, esta frase e esta cena viajaram comigo para sempre, quase obsessivamente. Durante muito tempo, preservei-as à luz do seu significado mais óbvio: eu era o David Crockett, que queria correr mundo e riscos, viver aventuras e desvendar Tenessees. Iria, fatalmente, sofrer, levar pancada e ficar, por vezes, inconsciente. Mas ao meu lado haveria sempre uma índia, que vigiaria o meu sono e cuidaria das minhas feridas, que me passaria a mão pela testa quando eu estivesse adormecido e me diria: «não te deixarei morrer, David Crockett!» E, só por isso, eu sobreviveria a todos os combates. Banal, elementar.
Porém, mais tarde, comecei a compreender mais coisas sobre as emboscadas, os combates e o comportamento das índias perante os guerreiros inconscientes. Foi aí que percebi que toda a minha interpretação daquela cena estava errada: o David Crockett representava sim a minha infância, a minha crença de criança numa vida de aventuras, de descobertas, de riscos e de encontros. Mas mais, muito mais do que isso: uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre. Esse era o mundo que eu tinha entrevisto nesse dia longínquo da minha infância e que me cabia tentar defender o resto da minha vida. Então, eu era antes a índia, que não podia deixar que se apagasse essa imagem e o seu sentido e que teria de repetir incontáveis vezes ao mais fundo de mim mesmo - lá onde jazia, inconsciente, o David Crockett - que não o deixaria morrer."


Miguel Sousa Tavares

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Excerto de O Livro Dos Amantes

I

"Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à  exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida."


II

"Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido."


IX

"Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo."



Natália Correia

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Paraíso


"Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso."


David Mourão-Ferreira

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Soneto Do Amor Difícil


"A praia abandonada recomeça
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso amor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...

Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu
desencanto na curva do teu céu."


David Mourão-Ferreira

domingo, 1 de abril de 2012

As Sem Razões Do Amor



"Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou de mais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor. "


Carlos Drummond de Andrade

Do Sentimento Trágico Da Vida



"Não há revolta no homem
que se revolta calçado.
O que nele se revolta
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado
à tábua da teoria.

Aquilo que nele mente
e parte em filosofia
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.

Revolta é ter-se nascido
sem descobrir o sentido
do que nos há-de matar.

Rebeldia é o que põe
na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.

E só depois de informado
só depois de esclarecido
rebelde nu e deitado
ironia de saber
o que só então se sabe
e não se pode contar."


Natália Correia

sexta-feira, 30 de março de 2012

Primavera


"Todo o amor que nos
prendera
como se fora de cera
se quebrava e desfazia
ai funesta primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia

E condenaram-me a tanto
viver comigo meu pranto
viver, viver e sem ti
vivendo sem no entanto
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdi

Pão duro da solidão
é somente o que nos dão
o que nos dão a comer
que importa que o coração
diga que sim ou que não
se continua a viver

Todo o amor que nos
prendera
se quebrara e desfizera
em pavor se convertia
ninguém fale em primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia."



David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 29 de março de 2012

Tentei Fugir Da Mancha Mais Escura

"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."



David Mourão-Ferreira

Retrato de Mónica

"Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniõesinoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero ecasto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder."


Sophia de Mello Breyner Andresen