terça-feira, 2 de setembro de 2014

Verão

«Só o Verão vale a pena ser vivido»

Rilke
 

"Vejo: caminhas até à borda da água e o reflexo da luz na água torna confusa a tua

silhueta, como se fossem duas pessoas que caminhassem num só corpo. Mas quando

mergulhas e desapareces dentro de água, as duas pessoas fundem-se numa só e tudo se

torna nítido de repente. Sei o que sentes, agora. Posso fechar os olhos e sinto-o também: a

leveza da água sobre os ombros, a consistência das coisas que tocas com as mãos, as pedras

e a areia grossa do fundo. Os peixes que passam diante do teu olhar, a certeza de que a vida

existe quando, por um instante, descemos a este mundo submerso que não é o nosso e

depositamos o peso que trazemos do mundo que é o nosso e assim nos reconstruímos,

porque a água tudo limpa.

Não vejo: fechou-se a marca da água que se abrira à tua entrada, um abismo líquido

interpôs-se entre nós, um prenúncio de catástrofe manchou a luz sem sombras de um dia

que julgávamos eterno.

Posso ficar deitado a olhar um céu absolutamente azul, posso procurar a luz do sol e

olhá-lo sem medo até que ele se transforme em milhares de pontos vermelhos, como

lágrimas em desordem. E posso fechar os olhos sabendo que agora nada mais acontecerá,

para sempre.

Enquanto o Verão passa e não regressam os que mergulharam no fundo do mar, a

praia é como um tempo suspenso, difuso e pouco nítido, atravessado por sons familiares

como os gritos das crianças à borda da água ou a voz cantada do vendedor de gelados.

Qualquer outro ruído estranho tornaria claro o que queremos fluido, perturbaria a única

paz que se tornou possível, a que advém do irreal.

Em Setembro virão as marés vivas e depois o Outono começará a despir as árvores,

antes que um céu plúmbeo se abata sobre nós e uma chuva sem remorsos varra da nossa

pele os últimos vestígios de sal. A partir daí, ficamos à espera, outra vez. Pelos céus azuis,

pelos peixes prateados, pela limpidez da água, pelos risos das crianças. Não quero que

desesperes na espera: haverá sempre Verão, sempre, para além de nós mesmos, e por mais

demorado que seja o regresso."



Miguel Sousa Tavares