sexta-feira, 30 de março de 2012

Primavera


"Todo o amor que nos
prendera
como se fora de cera
se quebrava e desfazia
ai funesta primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia

E condenaram-me a tanto
viver comigo meu pranto
viver, viver e sem ti
vivendo sem no entanto
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdi

Pão duro da solidão
é somente o que nos dão
o que nos dão a comer
que importa que o coração
diga que sim ou que não
se continua a viver

Todo o amor que nos
prendera
se quebrara e desfizera
em pavor se convertia
ninguém fale em primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia."



David Mourão-Ferreira

quinta-feira, 29 de março de 2012

Tentei Fugir Da Mancha Mais Escura

"Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração."



David Mourão-Ferreira

Retrato de Mónica

"Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniõesinoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero ecasto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder."


Sophia de Mello Breyner Andresen

quarta-feira, 28 de março de 2012

Há Palavras Que Nos Beijam

"Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte."


Alexandre O'Neill

"Ne cherche pas les "parce que" - en l'amour il n'y a pas de "parce que", de raison, d'explication, de solutions."


Anaïs Nin

segunda-feira, 26 de março de 2012

"The first principle is that you must not fool yourself - and you are the easiest person to fool."


Richard Feynman
"Foi um processo longo e difícil, como sempre o são as aproximações entre duas pessoas habituadas a estarem sozinhas. Primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça, a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos. Mas depois é a cabeça que trava o coração, as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes, um sufoco inexplicável que parece instalar-se onde dantes estava a intimidade. É preciso saber passar tudo isso e conseguir chegar mais além, onde a cumplicidade - de tudo, o mais difícil de atingir - os torna verdadeiramente amantes.

Miguel Sousa Tavares

domingo, 18 de março de 2012

Excerto de O Riso de Deus

“Tu terás de descobrir que o homem da tua vida, o outro que te provoca para a aventura de viveres e te conheceres, afinal está dentro de ti e é com ele que tu terás de procurar a tua unidade e a imersão no mistério de viver. Os outros, talvez sejam só os nossos companheiros de jornada que nos podem ajudar e acarinhar mas com quem não podemos criar dependências numa coisa tão importante como é a descoberta do sentido da vida.” 


António Alçada Baptista

sábado, 17 de março de 2012

"Si tu veux construire un bateau ne rassemble pas tes hommes et femmes pour le donner des ordres, pour expliquer chaque détail, pour leur dire où trouver chaque chose... Si tu veux construire un bateau, fais naître dans le coeur de tes hommes et femmes le désir de lar mer."


Antoine de Saint- Exupéry

sexta-feira, 16 de março de 2012

O Meu Orgulho

"Lembro-me o que fui dantes. Quem me dera
Não me lembrar! Em tardes dolorosas
Lembor-me que fui a Primavera
Que em muros velhos faz nascer as rosas!

As minhas mãos outrora carinhosas
Pairavam como pombas... Quem soubera
Porque tudo passou e foi quimera,
E porque os muros velhos não dão rosas!

O que eu mais amo é que mais me esquece...
E eu sonho: "Quem olvida não merece..."
E já não fico tão abandonada!

Sinto que valho mais, mais pobrezinha:
Que também é orgulho ser sozinha,
E também é nobreza não ter nada!"


Florbela Espanca

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Tua Voz Na Primavera

"Manto de seda azul, o céu reflete
Quanto alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!

Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo beijo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!

Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...

Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!"


Florbela Espanca

Excerto de A Verdadeira Dimensão

"- Sabes, Manuel, a morte não me faz medo. Há muito aprendi a viver lado a lado com ela, as noites são solitariamente longas. A angústia de existir já não me atormenta, porque a angústia de existir é sobretudo o medo incomensurável da morte. Mas ao envelhecermos a natureza trabalha o pensamento e as células para aceitarmos as coisas tal como elas são. O homem tem medo da morte desde o dia em que acreditou que poderia haver outro mundo, e no fundo sabe que esse mundo não existe, nunca existiu."


Vasco Martins

quarta-feira, 14 de março de 2012

"No lugar dos palácios desertos e em ruínas
À beira do mar,
Leiamos, sorrindo, os segredos das sinas
De quem sabe amar.

Qualquer que ele seja, o destino daqueles
Que o amor levou
Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,
Qualquer fosse o voo.

Por certo eles foram mais reais e felizes."


Álvaro de Campos

terça-feira, 13 de março de 2012

Excerto de O Riso De Deus

“…tu és um ser singular e a tua singularidade não pode sobrepor-se à minha. Muitas vezes parece que isso pode acontecer e as mulheres, sobretudo, têm uma capacidade de doação que as faz quase desistirem de si próprias para seguirem o caminho que um homem vai traçando com a sua singularidade para não dizer com os seus caprichos. Às vezes penso que o amor humano é um estímulo para termos um grande enternecimento com o mundo porque eu não sei se será possível lançar sobre alguém o nosso fogo interior sem que isso nos tire a liberdade.”


António Alçada Baptista

Lágrimas Ocultas

"Se me ponho a cismar em outras eras
Em que ri e cantei, em que era querida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida,
Que dantes tinha o rir das primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!"

Florbela Espanca

domingo, 11 de março de 2012

Excerto de Ao Longo Do Caminho


"A memória é a nossa escola da vida. É a nossa única e verdadeira defesa contra a traição e o abandono. Tudo pode ser traído e abandonado, menos a memória. É mais fiel que qualquer amigo, é mais longa que a própria vida, é mais verdadeira do que qualquer verdade que temos como certa. Tal como o Adriano de Yourcenar também eu lamento que a memória da maior parte dos homens seja um cemitério abandonado, onde jazem, sem honra, os que deixámos de amar. Adriano reclamava o direito de chorar, sem fim e sem limites, o seu jovem amado morto. Em sua memória, não em sua honra, espalhou pelos quatro cantos do Império uma profusão de Antinoos, para que a beleza fria do mármore dissesse a todos que o Imperador não esquecia nem cessava a sua dor. A tanto excesso, os seus contemporâneos e, mais tarde, os historiadores, chamariam loucura. Mas Adriano chamava-lhe fidelidade e doía-lhe a incompreensão: " Sinto que à minha volta todos se incomodam com a minha dor. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento."

Como Adriano, eu quero essa fidelidade. Mais: devo a mim mesmo essa fidelidade. Não posso negar o que vi, o que cheirei, o que senti, o que amei. Não posso negar que fui feliz, se fecho os olhos e sinto outra vez todos os instantes felizes. Não, não posso negar que atravessei rios contigo, que te ensinei o nome das estrelas, que ouvimos juntos os pássaros e o vento nas árvores, que caminhei pelas ruas de mãos dadas contigo e que houve outros momentos que não foram felizes, mas, que, mesmo então e mesmo ao longo dos corredores dos hospitais, havia uma luz ao fundo e essa luz indicava o caminho. Enquanto me lembrar, estarei vivo, porque esse é o mais certo indício de vida. Eu estarei vivo e, vivendo, não deixarei morrer quem caminhou comigo, ao longo do caminho."


Miguel Sousa Tavares

sábado, 10 de março de 2012

"Je ne veux pas être celle qui mène. Je refuse d'être le chef. Je veux vivre dans tout le mystère et la richesse de ma féminité. Je veux un homme qui se couche sur moi, toujours sur moi. Sa volonté, son plaisir, son désir, sa vie, son travail, sa sexualité : voilà la pierre de touche, le levier de commande, mon pivot. Ca m'est égal de travailler, de tenir les rênes sur le plan artistique et intellectuel ; mais comme femme, oh ! mon Dieu, comme femme je veux être dominée. Je me moque que l'on me dise de compter sur moi-même, de ne m'accrocher à personne - tout cela, j'en suis capable - mais je veux être poursuivie, baisée, possédée par la volonté d'un homme, à son heure et selon ses ordres"


Anaïs Nin

sexta-feira, 9 de março de 2012

Amor Que Morre

"O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarão, ao longe, já desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
São precisos amores, pra morrer,
E são precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que há-de vir!"


Florbela Espanca

quinta-feira, 8 de março de 2012

Ser Poeta

"Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Áquem e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!"


Florbela Espanca

quarta-feira, 7 de março de 2012

Se Tu Viesses Ver-me

"Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti..."


Florbela Espanca

terça-feira, 6 de março de 2012

Excerto de Encontro


"E lembrei-me de ti, com ternura (ou seria paixão?). A palma das tuas mãos, a pele dos teus pulsos, os dedos esguios e longos, os dentes brancos num sorriso meio tímido, meio atrevido, o teu riso, o teu humor, a tua inteligência cristalina. Pensei telefonar-te, mas estas coisas não se dizem por telefone. Guardei-te para mais tarde, para quando os teus olhos pousassem sobre mim, para quando a tua mão me limpasse o suor da testa, a tua boca limpasse vestígios de sal da minha pele.
Em vão, como vês, me esforcei por não me distrair. Para passar por ti como se passa por um episódio, por um acidente à beira da estrada, por uma ilusão de água num mar sem fim de areia. Eu queria só a solidão, o silêncio submerso dos dias vazios e sem destino, a consistência da água e a evidência das pedras. Eu queria um mundo sem ti nem ninguém mais, uma vida - tão merecida - de egoísmo e de instantes impartilháveis. Mas tu és como a anémona que segue a corrente que passa, tu és a lapa presa à rocha, o sulco de areia durante a maré vazia que indica o caminho de regresso ao mar, tu és a densidade da água dentro da qual eu me reencontro e reconstruo."


Miguel Sousa Tavares

segunda-feira, 5 de março de 2012

Tortura

"Tirar dentro do peito a emoção,
A lúcida verdade, o sentimento,
- E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vento!…

Sonhar um verso d’alto pensamento,
E puro como um ritmo de oração!
- E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento!…

São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!

Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!"


Florbela Espanca

domingo, 4 de março de 2012

XX Pequena Elegia Chamada Domingo


"O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tão pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mãos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.

Hoje os montes e os rios
e as nuvens
não vêm nas tuas mãos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios…)
O domingo está apenas nos meus olhos
e é grande.
Os montes estão distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas."


Eugénio de Andrade

sábado, 3 de março de 2012

Excerto de O Mediterrâneo


"Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte. 
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo."


Miguel Sousa Tavares

sexta-feira, 2 de março de 2012

Fado

"Falam de nós na cidade
Porque dizem que te ofereço 
Coisas de que não disponho, 
Como se fosse maldade 
Dar-te os olhos para berço 
E os cabelos para sonho.

Dizem que quando eu me deito 
Contigo, uma lua negra 
Vem fazer o casamento. 
Como se fosse defeito 
Saber que a vida não chega 
Para o nosso sentimento.

Lá porque o nosso passeio 
É uma fuga das grades 
Que em cada gesto partimos. 
Dão um nome muito feio 
Àquelas intimidades 
Em que ficando, fugimos.

Dizem que este desatino 
É a maldita lembrança 
Do pecado original? 
Eu só sei que isto é destino 
E mesmo que seja herança 
É legado natural.

Porque é virtude tocar-te 
Tu és mais puro que um deus 
Purificas o que afagas. 
Meu amor só de afagar-te 
A minha mão chega aos céus 
E sou mais forte que as pragas."
 
 
Natália Correia

quinta-feira, 1 de março de 2012

Excerto de Lady Chatterley's Lover

"She did not understand the beauty he found in her, through touch upon her living secret body, almost the ecstasy of beauty. For passion alone is awake to it. And when passion is dead, or absent, then the magnificent throb of beauty is incomprehensible and even a little despicable; warm, live beauty of contact, so much deeper than the beauty of vision. She felt the glide of his cheek on her thighs and belly and buttocks, and the close brushing of his moustache and his soft thick hair, and her knees began to quiver. Far down in her she felt a new stirring, a new nakedness emerging. And she was half afraid. Half she wished he would not caress her so. He was encompassing her somehow. Yet she was waiting, waiting."

D.H. Lawrence