terça-feira, 27 de agosto de 2013

Adeus

"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mão à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
e eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus."


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Um Desejo De Nada

"Fui onze vezes ao deserto do Sahara. Nos últimos anos, tenho ido sempre, pelo
menos uma vez por ano, assim como outros vão a Fátima ou outros a Paris. A devoção
tornou-se assim uma espécie de obsessão, aos olhos dos amigos ou dos estranhos:
perguntam-me frequentemente o que é que eu lá procuro e o que é que encontro. E a esta
pergunta, tão simples e tão vasta, costumo dar uma das minhas respostas preferidas: não
procuro nada e não se encontra o que se procura, mas o que se encontra. De vez em
quando, forçado a explicar-me melhor, falo da paisagem inicial e despojada do deserto, ou
da viagem interior que ali acompanha a outra viagem. Mas não passam de lugares-comuns,
próprios de quem não sabe a resposta ou, no subconsciente, não deseja partilhá-la com os
outros.
O que é que se procura num deserto? Por definição, nada. O deserto é a ausência de
tudo. É esse, afinal, o segredo desta estranha atracção: a ausência de tudo equivale ao
princípio de tudo, como uma página em branco. Por isso, as minhas recordações mais
marcantes do Sahara estão ligadas sempre a coisas incrivelmente simples: um copo de água
gelado, oferecido por um médico da Frente Polisário, num hospital de campanha do Sahara
Ocidental, com uma temperatura de 60º centígrados lá fora; uma noite deitado numa duna
de areia, no extremo sul argelino, entre um silêncio absoluto, a ver passar os satélites de
telecomunicações no céu, a olho nu; ou outra fantástica noite no sul de Marrocos, numa
tenda berbere de um abrigo para viajantes, debaixo de uma tempestade de areia
desencadeada subitamente, dormindo e acordando ao som do vento rugindo em fúria
descontrolada e coberto de areia da cabeça aos pés.
Não se encontra o que se procura, mas o que se encontra. Encontrei uma vez uma
víbora preta, debaixo de um tanque marroquino destruído na guerra com a Polisário;
encontrei um escorpião branco da areia, sinistro e pequeno assassino, a um metro das
minhas costas, quando me preparava para dormir num velho forte abandonado; encontrei
um antílope que corria ao longe, no meio da extensão sem fim das dunas do Grande Erg
Ocidental, e uma noite encontrei um pássaro enorme, que parecia um faisão e que, saído de
parte alguma, se veio esborrachar contra os faróis do jipe, oferecendo-se em inesperado
jantar. E encontrei gente que só ali se encontra - o Ahmed, o Sidi, o Mohamed «Pás de
Problème», o Ali e outros, europeus como eu e, tal como eu, à procura de coisa alguma. E
encontrei duas mulheres berberes com um burro, num poço, no meio do nada. A mais
nova era muito bonita e tinha uma criança ao colo. Dei-lhe os habituais presentes e
perguntei-lhe por gestos se a podia fotografar.
Ela fez um sorriso de pura sedução, abriu a roupa, tirou o peito para fora e começou
a fingir que dava de mamar à criança, que não tinha fome nenhuma: fiz-lhe uma verdadeira
fotografia erótica.
Mas o deserto raras vezes é aquela coisa sempre poética e deslumbrante do filme do
Bertolucci, com dunas cor-de-rosa e vermelhas ao pôr-do-sol. A maior parte das vezes,
longe das caravanas de camelos para os turistas da «photo opportunity», é um terreno
áspero, duro, feito de calhaus e terra escurecida, sem árvores, sem dunas, sem pássaros,
sem água nem rios, sem nenhum sinal de vida - como uma Lua debaixo do Sol. A
progressão lenta e massacrante, a paisagem é monótona e triste, as jornadas são esgotantes
e vazias de acontecimentos: tudo nos faz desesperar por um acampamento ao fim do dia,
dois litros de água para limpar o pó da cara e da cabeça, uma lareira, uma sopa quente, uma
conversa que engane as saudades de casa.
Porquê, então, este desejo veemente de deserto, esta vontade de nada, de vazio
absoluto, esta viagem ao mais fundo de nós mesmos - lá, onde não resta sombra de
arrogância, do orgulho, e da sabedoria que julgamos ter? Talvez (vou enfim arriscar uma
resposta...) porque ali estamos a sós com o Absoluto, ali, se os Deuses existem, é o mais
próximo deles que podemos estar, porque ali reside, mesmo que jamais o decifremos, a
chave para o eterno enigma da Criação. É ali que começa a vida, é o nosso útero, o
princípio de todas as coisas. Só então ficamos a saber que tudo o resto são circunstâncias."


Miguel Sousa Tavares

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Eternity In An Hour

"To see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wild Flower,
Hold Infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour.

A Robin Redbreast in a Cage
Puts all Heaven in a Rage.
A dove house fill’d with doves and pigeons
Shudders Hell thro’ all its regions.
A Dog starv’d at his Master’s Gate
Predicts the ruin of the State.
A Horse misus’d upon the Road
Calls to Heaven for Human blood.
Each outcry of the hunted Hare
A fiber from the Brain does tear.

He who shall train the Horse to War
Shall never pass the Polar Bar.
The Beggar’s Dog and Widow’s Cat,
Feed them and thou wilt grow fat.
The Gnat that sings his Summer song
Poison gets from Slander’s tongue.
The poison of the Snake and Newt
Is the sweat of Envy’s Foot.

A truth that’s told with bad intent
Beats all the Lies you can invent.
It is right it should be so;
Man was made for Joy and Woe;
And when this we rightly know
Thro’ the World we safely go.

Every Night and every Morn
Some to Misery are Born.
Every Morn and every Night
Some are Born to sweet delight.
Some are Born to sweet delight,
Some are Born to Endless Night."


William Blake

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Sê Rei De Ti Próprio

"Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio."


Ricardo Reis

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Ítaca

"Quando partires de regresso a Ítaca,
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,
Poseidon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes,
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas.
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca."


Konstandinos Kavafis

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

E Ela Dança

"Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual
como escreveu («bailarina fui mas nunca bailei»). Às vezes, convencia-se que havia ladrões
em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia
ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do
dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do «velho
abutre»: só tinha medo de fantasmas.
Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os
poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e
diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos
convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que
esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina
familiar.
Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou
tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol
comigo no jardim.
A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para
ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica
ou de mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de
Shakespeare em inglês do século XVI, ou o «Erl Kõnig», do Goethe, em alemão. E
quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela
Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso «Llanto
por Ignácio Sanchez Mejia». À mesa, entre a sopa e  o prato principal, dentro de um
automóvel a caminho do sul ou na missa das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela
começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas
triviais ou respondiam em latim ao «orate, frates!» do padre. Às vezes, naquele terror que as
crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão
abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal,
ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por  vezes, distraída, perdia-nos), ela
começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de
repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico  a caminho de casa, ela fixou-se num
letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: «se alguma janela o incomoda, peça ao
condutor que a feche». E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros,
que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada,
recitando um poema: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que
nunca mais a abra.»
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar.
Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para
perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a
olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num
café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade
na luta pela justiça, «num sítio tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na
busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a «manhã da praça de Lagos» e noites com «jardins invadidos de luar». E ela dançará.
Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância."


Miguel Sousa Tavares

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

"O sedentário está perdido porque tem um destino que não encontra. O nómada não procura, encontra-se no próprio acto de viajar. É essa a diferença entre o turista e o viajante, é esse o sentido de Ítaca, é essa a riqueza de cada viagem."

Gonçalo Cadilhe em Angústia de Estar Fora em 1Km de Cada Vez