sábado, 3 de julho de 2021

Creio nos Anjos que Andam pelo Mundo

A Demiurgia do Riso


"E cada vez que celebrei o

Deus Riso floresceu em mim

um novo invento.


Cortaram-me os pulsos.Eram feitos de ar.

Correram-me as veias como linhas rectas.

E nenhuma espada pôde atravessar

O ímpeto aéreo das águas secretas.


Partiram-me ao meio dizendo "é agora!"

Depois atiraram metade para a lua.

E eu no luar com um braço de fora

Erguendo o meu resto caído na rua.

Se havia uma estátua ela era o tamanho

De quanta poeira à passagem erguia.

E eu numa nuvem a ver o desenho

E a cor duma mágoa que não me tingia.


E os anjos à volta como círios tesos

A desenrolar o seu tédio antigo.

E eu desfraldada nos cumes acesos:

Bandeira de tudo o que trago comigo."




Andar? Não me Custa Nada


"Andar?! Não me custa nada!...

Mas estes passos que dou

Vão alongando uma estrada

Que nem sequer começou.

Andar na noite?!Que importa?...

Não tenho medo da noite

Nem medo de me cansar:

Mas na estrada em que vou,

Passo sempre à mesma porta...

E começo a acreditar

No mau feitiço da estrada:

Que se ela não começou

Também não foi acabada!

Só sei que,neste destino,

Vou atrás do que não sei...

E já me sinto cansada

Dos passos que nunca dei."



Cântico do País Emerso

"Os previdentes e os presidentes tomam de ponta

Os inocentes que têm pressa de voar

Os revoltados fazem de conta fazem de conta...

Os revoltantes fazem as contas de somar.


Embebo-me na solidão como uma esponja

Por becos que me conduzem a hospitais.

O medo é um tenente que faz a ronda

E a ronda abre sepulcros fecha portais;


Os edifícios são malefícios da conjura

Municipal de um desalento e de uma Porta.

Salvo a ranhura para sair o funeral

Não há inquilinos nos edifícios vistos por fora


Que é dos meninos com cataventos na aérea

Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?

Almas bovinas acomodadas à matéria

Pastam na erva entre as ruínas da memória,


Homens por dentro abandalhados em unhas sujas

Que desleixaram seu coração num bengaleiro;

Mulheres corujas seriam gregas não fossem as negras

Nódoas deixadas na sua carne pelo dinheiro;


Jovens alheios à pulcritude do corpo em festa

Passam por mim como alamedas de ciprestes

E a flor de cinza da juventude é uma aresta

Que me golpeia abrindo vácuos de flores silvestres


E essa ansidedade de mim mesma me virgula

Paula de pátria entressonhada. É um crisol.

E, o fruto agreste da linfa ardente que em mim circula

Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro ao sol.


Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva

De uma angústia florida em narinas frementes.

Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-me

a galope num sonho com espuma nos dentes.


E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do Instinto!

Que me acenais do mar com um lenço cor da aurora

E com a tinta azulada desse aceno me pinto.

O cais é a urgência. O embarque é agora."




Creio nos anjos que Andam pelo mundo


"Creio nos anjos que andam pelo mundo,

Creio na Deusa com olhos de diamantes,

Creio em amores lunares com piano ao fundo,

Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,


Creio num engenho que falta mais fecundo

De harmonizar as partes dissonantes,

Creio que tudo eterno num segundo,

Creio num céu futuro que houve dantes,


Creio nos deuses de um astral mais puro,

Na flor humilde que se encosta ao muro,

Creio na carne que enfeitiça o além,


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,

Na ocupação do mundo pelas rosas,

Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen."


Natália Correia