quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Poema Sáfaro

"Todos os poemas são feitos
Com o ouro das horas disponíveis
Depois de penteado o poeta
Das suas partes mais sensíveis
Extrai um vapor de tristeza.

E com essa matéria forma
A melancólica gentileza
De um hóspede a quem afaga
As mãos debaixo da mesa.

Fazer poemas enquanto se mata
Durante a cópula quando faminto
Esses nunca os vi fazer.

A poesia é sempre em vez
Mênstruo de alma uma vez por mês
Sangrenta flor abortada
Da natureza infecundada."


Natália Correia

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Advertência a Folhas Caídas

"O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.
Imaginação que porventura não se realiza nunca. E daí quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstracta de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza, e ainda coisas mais materiais, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele.
Logo o poeta é louco porque aspira sempre ao impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais longa.
Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele - ora ri amargamente porque reconhece o seu engano - ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã.
Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.
Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.
E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte.
Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta."


Almeida Garrett