quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

"Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo."


Sophia de Mello Breyner Andresen (em Arte Poética III)

Arte Poética II


"A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha paiticipação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Ondas

"Onde - ondas - mais belos cavalos
Do que estes ondas que vós sois
Onde mais bela curva do pescoço
Onde mais bela crina sacudida
Ou impetuoso arfar no mar imenso
Onde tão ébrio amor em vasta praia?"


Sophia de Mello Breyner Andresen

Descobrimento

"Saudavam com alvoroço as coisas
Novas
O mundo parecia criado nessa mesma
Manhã"


Sophia de Mello Breyner Andresen

O Jardim E A Casa

"Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas,
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade."


Sophia de Mello Breyner Andresen
"Mais do que tudo, odeio
Tantas noites em flor da Primavera,
Transbordantes de apelos e de espera,
Mas donde nunca nada veio."


Sophia de Mello Breyner Andresen
"Se tanto me dói que as coisas passem
É porque cada instante em mim foi vivo
Na luta por um bem definitivo
Em que as coisas de amor se eternizassem."


Sophia de Mello Breyner Andresen
"Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobre, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda."


Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Separados Fomos


"Separados fomos por cítaras e canto
E pelos longos poemas silabados
E entre nos dois deitaram-se paisagens
Que nos mantinham imóveis e distantes

Embora o fogo secreto das palavras
E a veemência do canto e das imagens
Embora a paixão das noites consteladas
E o nevoeiro tocando a nossa face

Separados fomos por citaras e canto
Como outros por prisões ou por espadas."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Óasis


"Penetraremos no palmar
A água será clara o leite doce
O calor será leve o linho branco e fresco
O silêncio estará nu - o canto
Da flauta será nítido no liso
Da penumbra

Lavaremos nossas mãos de desencontros e poeira."


Sophia de Mello Breyner Andresen


Exílio


"Exilámos os deuses e fomos
Exilados da nossa inteireza"


Sophia de Mello Breyner Andresen


Regressarei


"Eu regrassarei ao poema como à pátria à casa
Como à antiga infância que perdi por descuido
Para buscar obstinada a substância de tudo
E gritar de paixão sob mil luzes acesas."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Descobrimento

"Um oceano de músculos verdes

Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado.
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados
Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios
O mar tomou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Antinoos

"Sob o peso nocturno dos cabelos
Ou sob a lua diruna do teu ombro
Procurei a ordem intacta do mundo
A palavra não ouvida.

Longamente sob o fogo ou sob o vidro
Procurei o teu rosto
A revelação dos deuses que não sei

Porém passaste através de mim
Como passamos através da sombra."


Sophia de Mello Breyner Andresen


"O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Em Nome


"Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei."


Sophia de Mello Breyner Andresen

Retrato De Uma Princesa Desconhecida


"Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um imenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino."


Sophia de Mello Breyner Andresen