sexta-feira, 29 de junho de 2012

Rosto Afogado

"Para sempre um luar de naufrágio
Anunciará a aurora fria.
Para sempre o teu rosto afogado,
Entre retratos e vendedores ambulantes,
Entre cigarros e gente sem destino,
Flutuará rodeado de escamas cintilantes.

Se me pudesse matar,
Seria pela curva doce dos teus olhos,
Pela tua fronte de bosque adormecido,
Pela tua voz onde sempre amanhecia,
Pelos teus cabelos onde o rumor da sombra
Era um rumor de festa,
Pela tua boca onde os peixes se esqueciam
De continuar a viagem nupcial.
Mas a minha morte é este vaguear contigo
Na parte mais débil do meu corpo,
Com uma espinha de silêncio
Atravessada na garganta.

Não sei se te procuro ou se me esqueço
De ti quando acaso me debruço
Nuns olhos subitamente acesos
Ao dobrar duma esquina,
Na boca dos anjos embriagados
De tanta solidão bebida pelos bares,
Nas mãos levemente adolescentes
Pousadas na indolência dos joelhos.

Quem me dirá que não é verdade
O teu rosto afogado, o teu rosto perdido,
De sombra em sombra, nas ruas da cidade?

Ninguém te conheceu,
Ninguém viu romper a luz na tua cama,
Ninguém sabe, ninguém,
Que o teu corpo, continente selvagem,
De desvelava por uma pedra branca
Atirada contra o nevoeiro.

Por isso escrevo esta elegia
Como quem oferece a luz dos olhos;
Por isso canto o teu rosto afogado
Como quem canta um funeral de espigas."


Eugénio de Andrade

O Amor

"Estou a amar-te como o frio
Corta os lábios.

A arrancar a raiz
Ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
De saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
A boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
O itinerário da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável."


Eugénio de Andrade

Obscuro Domínio

"Amar-te assim desvelado
Entre barro fresco e ardor.
Sorver entre lábios fendidos
O ardor da luz orvalhada.

Deslizar pela vertente
Da garganta, ser música
Onde o silêncio aflui
E se concentra.

Irreprimível queimadura
Ou vertigem desdobrada
Beijo a beijo,
Brancura dilacerada.

Penetrar na doçura da areia
Ou do lume,
Na luz queimada
Da pupila mais azul,

No oiro anoitecido
Entre pétalas cerradas,
No alto e navegável
Golfo do desejo,

Onde o furor habita
Crispado de agulhas,
Onde faça sangrar
As tuas águas nuas."


Eugénio de Andrade

Vaguíssimo Retrato

"Levar-te à boca,
Beber a água
Mais funda do teu ser -
Se a luz é tanta,
Como se pode morrer?"


Eugénio de Andrade

A Palmeira Jovem

"Como a palmeira jovem
Que Ulisses viu em Delos, assim

Esbelto era o dia
Em que te encontrei;

Assim esbelta a noite
Em que te despi,

E como um potro na planície nua
Em ti entrei."


Eugénio de Andrade

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Eternity

"He who binds to himself a joy
Does the winged life destroy;
But he who kisses the joy as it flies
Lives in eternity's sun rise."


William Blake 
"If the doors of perception were cleansed everything would appear to man as it is: infinite."


William Blake

O Navio De Espelhos

"O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão não traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo"


Mário Cesariny

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Poema 14 ou Mis Palabras Llovieron Sobre Ti Acariciándote

"Juegas todos los días con la luz del universo.
Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua.
Eres más que esta blanca cabecita que aprieto
como un racimo entre mis manos cada día.

A nadie te pareces desde que yo te amo.
Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas.
Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur?
Ah déjame recordarte cómo eras entonces, cuando aún no existías.

De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada.
El cielo es una red cuajada de peces sombríos.
Aquí vienen a dar todos los vientos, todos.
Se desviste la lluvia.

Pasan huyendo los pájaros.
El viento. El viento.
Yo sólo puedo luchar contra la fuerza de los hombres.
El temporal arremolina hojas oscuras
y suelta todas las barcas que anoche amarraron al cielo.

Tú estás aquí. Ah tú no huyes.
Tú me responderás hasta el último grito.
Ovíllate a mi lado como si tuvieras miedo.
Sin embargo alguna vez corrió una sombra extraña por tus ojos.

Ahora, ahora también, pequeña, me traes madreselvas,
y tienes hasta los senos perfumados.
Mientras el viento triste galopa matando mariposas
yo te amo, y mi alegría muerde tu boca de ciruela.

Cuanto te habrá dolido acostumbrarte a mí,
a mi alma sola y salvaje, a mi nombre que todos ahuyentan.
Hemos visto arder tantas veces el lucero besándonos los ojos
y sobre nuestras cabezas destorcerse los crepúsculos en abanicos girantes.

Mis palabras llovieron sobre ti acariciándote.
Amé desde hace tiempo tu cuerpo de nácar soleado.
Hasta te creo dueña del universo.
Te traeré de las montañas flores alegres, copihues,
avellanas oscuras, y cestas silvestres de besos.

Quiero hacer contigo
lo que la primavera hace con los cerezos."


Pablo Neruda

sexta-feira, 8 de junho de 2012


"Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar."
 
Alberto Caeiro
“… a verdade está escondida num poço, mas quando lhe vem o capricho de se mostrar, toda a gente fica surpreendida e fixa sobre ela os olhares, porque surge completamente nua, é mulher e é bela.”


Giacomo Casanova