domingo, 29 de julho de 2012

Despedida

"Junho chegara ao fim, a magoada
Luz dos jacarandás, que me pousava
Nos ombros, era agora o que tinha
Para repartir contigo,
E um coração desmantelado
Que só aos gatos servirá de abrigo."


Eugénio de Andrade

Contigo

"Sou eu, sou eu que não durmo,
Contigo nos sentidos.
Sinto-me caminhar sobre as águas
Do meu corpo - não sejas queimadura
Nem boca do deserto.
Nenhum amor é estéril, um filho
Pode ser uma estrela ou um verso."


Eugénio de Andrade

Sem Memória

"Haverá para os dias sem memória
Outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
Manhã rente às colinas,
A luz do corpo levada aos lábios,
Os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
Onde não há lembrança de ti?"


Eugénio de Andrade

O Desejo

"O desejo, o aéreo e luminoso
E magoado desejo latia ainda;
Não sei bem em que lugar
Do corpo em declínio mas latia;
Bastava abrir os olhos para ouvir
O nasalado ardor da sua voz:
Era a manhã trepando às dunas,
Era o céu de cal onde o sul começa,
Era por fim o mar à porta - o mar,
O mar, pois só o mar cantava assim."


Eugénio de Andrade

Sem Ti

"É um fardo aos ombros
O corpo, sem ti.
Até o amarelo
Dos girassóis se tornou cruel.
Não invento nada,
Na arte de olhar
A luz é cúmplice da pele."


Eugénio de Andrade

Mesmo Em Ruína

"É tão antiga a chuva na vidraça.
Vem do pequeno bosque onde o verão
Mordia os flancos da água.
O que no coração tarda
A morrer é a luz mesmo em ruína.
A sumptuosa seda do outono.
A doçura, o sal da língua."


Eugénio de Andrade

Sobre A Terra

"Sei que estou vivo e cresço sobre a terra.
Não porque tenha mais poder,
Nem mais saber, nem mais haver.
Como lábio que suplica outro lábio,
Como pequena e branca chama
De silêncio,
Como sopro obscuro do primeiro crepúsculo,
Sei que estou vivo, vivo
Sobre o teu peito, sobre os teus flancos,
E cresço para ti."


Eugénio de Andrade

A Sereia Do Báltico


"Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato.
Tenho nove anos e vivo no Rossio. Vou amachucando cuidadosamente uma folha de jornal até fazer dela uma bola, passo-lhe à roda um cordel, dou-lhes três ou quatro voltas apertadas, e acabo por deixar uma longa ponta de quase dois metros. É com esta arma no bolso que saio à rua, e raro é o dia em que não regresso com um gato. Não é difícil: 
atiro a bola ao primeiro bicho que descubro e vou puxando o fio. Nenhum resiste. O gato pula, corre atrás da bola, nunca mais pára até que chegamos a casa; então aos mais pequenos, é preciso ajudá-los nas escadas.
Às vezes, minha mãe dá-lhes um pouco de leite, e leva-os depois; outras, se está maldisposta, obriga-me a ir pô-los no sítio onde os encontrei. Não sei como o Bibi escapou. Teria a mãe sido cativada pela sua beleza - era um pequeno tigre de grandes olhos cor de bronze - eu pensaria que, se eu tivesse um gato, perderia aquela mania de trazer para casa todo o maltrapilho? Não sei, a verdade é que foi ficando, e se a relação dele com a mãe nos primeiros tempos não foi feliz, comigo poderia falar-se em idílio: era eu que lhe dava de comer, dormia aos meus pés, conhecia o meu toque de campaínha e, embora tivesse garras e dentes bem afiados, nunca ninguém me viu mordido ou arranhado.
Cresceu muito, e era elegante de seu natural, a cabeça levantada, atenta, como se escutasse qualquer rumor distante.
E não sei de quem melhor soubesse administrar o silêncio.
É preciso dizer que o bicho chegara a casa com maus hábitos. A mãe pusera-lhe um caixote com serradura a um canto da casa de banho para as suas necessidades, mas ele preferia fazê-las na banheira e até no lavatório,
justamente sobre o ralo. Quando ouvia a mãe dizer: "Raios partam o gato!", já sabia o que, mais uma vez, acontecera. Procurava-o a seguir no meu quarto (já disse, creio eu, que o Bibi passava o tempo deitado na minha cama), e levava-o à força com ela. Entre injúrias e palmadas, ouvia o gato bufar e miar, até conseguir escapar-se e meter-se debaixo da minha cama, depois de alguma arranhadela, pois o castigo humilhava-o: a mãe esfregava-lhe invariavelmente o focinho na porcaria que ele depusera, talvez como oferenda, na banheira ou no lavatório. Depois aproximava-se de mim, fazia-me queixa: "Se não gostasse tanto dele, já teria tido o destino dos outros". Eu olhava-lhe a mão arranhada, pegava nela, fazia-lhe uma festa. "Ele também é louco por ti, mas é um porcalhão", insistia. Faço-lhe uma festa, ela sorri, e depois vai à sua vida. Era a minha vez de procurar o Bibi, que se encontrava ainda debaixo da cama: "Vem cá, meu porcalhãozito, ela já se foi embora, já não te bate mais. Anda aqui, minha sereia do Báltico: não há maneira de teres juízo, dá cá a pata". Demorava um pouco a sair, mas depois lá vinha, acabando por dar uma turrinha na mão que o procurava no escuro, consentia que o pusesse no colo, lhe fizesse alguns mimos. Não tardava a correr atrás de mim, por aquele corredor que nunca mais acabava, nunca mais acabava."


Eugénio de Andrade

Fábula


"Estavam ali diante dos meus olhos: era terrível e ao mesmo tempo fascinante.
Ao princípio pensei que ele a estava a matar, logo a seguir percebi que não, que talvez ambos estivessem a morrer, só depois qualquer apelo distante se fez carne em mim. Então todo eu fiquei amarrado aos seus gestos, àquela respiração fatigada e difícil, àquele balbucio que lhes saía ralo da boca.
Os seios de Maria caíam nus da blusa. Uma das mãos do carpinteiro perdia-se nos seus cabelos emaranhados, a outra parecia ter-se enterrado na areia. O resto era aquele corpo todo de homem: rígido e fremente ao mesmo tempo, à força de concentrar todo o ímpeto nas nádegas, arco de onde a flecha partia, para se cravar exasperada nas entranhas da rapariga. Parecia um cavalo ofegante – os olhos cerrados, o suor escorrendo da raiz dos cabelos, espalhando-se pelas costas, pelos flancos, pelas pernas, quase todas descobertas. Um cavalo cego mordendo o céu branco de agosto. Mas a terra chamou-o, e um relincho prolongado encheu o leito do ribeiro, morreu no alto dos amieiros. Por fim, a paz desceu ao mundo.
Maria olhava o carpinteiro com olhos rasos de espanto, como quem tivesse perdido tudo naquele instante. Lentamente passou-lhe a mão pelo cabelo, numa carícia tímida, e começou a chorar. O carpinteiro olhou-a também, mas os seus olhos eram diferentes, eram os olhos da própria solidão.
Sem uma palavra, o homem ergueu-se e começou a mijar. A rapariga levantou-se a seguir e, de costas, parecia limpar as pernas. Eu escondi-me melhor atrás dos amieiros, não vi mais nada. Senti os passos de ambos afastarem-se, cada um para seu lado, com o coração apertado. De um salto, atirei-me à cama que os seus corpos haviam feito na areia, respirando avidamente, como se o ar pudesse trazer-me mais do que o cheiro acidulado da urina, e deixei de perceber os passos já distanciados, o estalar dos ramos secos aqui e ali, para só ouvir o silêncio. O doloroso, insuportável silêncio."


Eugénio de Andrade

Corpo

"O mar - sempre que toco
Um corpo é o mar que sinto
Onda a onda
Contra a palma da mão.
Vésper está agora
Tão próxima que já não posso
Perder-me naquela infatigável
Ondulação."


Eugénio de Andrade

Os Pêssegos

"Lembram adolescentes nus:
A doirada pele das nádegas
Com marcas de carmim, a penugem
Leve, mais encrespada e fulva
Em torno do sexo distendido
E fácil, vulnerável aos desejos
De quem só o contempla e não ousa
Aproximar dos flancos matinais
A crepuscular lentidão dos dedos."


Eugénio de Andrade

O Sorriso

"Creio que foi o sorriso,
O sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
Lá dentro, apetecia
Entrar nele, tirar a roupa, ficar
Nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso."


Eugénio de Andrade

Os Jacarandás

"Em meados de Junho os jacarandás de Lisboa estão em flor, a sua luz fende a pupila, acaricia o dorso da sombra. É então que - sei lá se pela última vez - a inocência volta a entrar na minha vida. Olhos, mãos, alma, tudo é novo - recomeço a prodigalizar alegria, uma alegria que não procura palavras porque o seu reino não é o da expressão. Digamos que esta nova experiência, a que não quero dar nome, não se preocupa em interrogar, talvez por já não ser tempo de dúvidas, ou então por não lhe dizerem respeito essas verdades últimas, cegas como facas.

Não é um poema de obediência o que me proponho nestas linhas; trata-se doutra coisa: levar à boca fresca do ar o ardor das areias queimadas. Mas sem palavras, sem palavras."


Eugénio de Andrade

Casa No Sol

"A casa é branca, branca de cal (que de todos os brancos é o único que é branco), debruada de azul, por ser à beira-mar a cor da alegria. Branca e fechada - não vá o sol que arde nos telhados penetrar insidiosamente por alguma fresta e incendiar o silêncio melindroso da alcova. A obscuridade quase não consente a contemplação do rosto infantil que ali dorme até o sol ter amansado. Só então desperta e se refugia nos braços que já o esperam.
Por esse rapazito serias capaz de correr o mundo a pé-coxinho, se ele to pedisse, ou entrar pelo buraco da fechadura só para o veres dormir."


Eugénio de Andrade

Entre O Primeiro E O Último Crepúsculo

"Eu tinha dois ou três anos, tenho agora sessenta, e o apelo da luz é o mesmo, como se dela tivesse nascido e só a ela não pudesse deixar de regressar. Entre o primeiro crepúsculo e o último, sempre o corpo todo se deixou penetrar por esse ardor que se fazia carícia na parte mais diáfana e imponderável do ser, e a que, se não lhe chamarmos luz também, não saberemos nunca que nome dar."


Eugénio de Andrade

Fadiga

"Falar é fatigante. De todas as estrelas, a mais rouca e ácida é também a mais próxima. O inverno convida à promiscuidade, os olhos acabam por cair no curral - quem não amou um porco?
Nenhum lugar de amor é triste, mesmo uma estrebaria pode ser o paraíso."


Eugénio de Andrade

M.

"Todos os dias as suas águas pequenas afloram os meus olhos. E eles, que morriam de inanidade, ganham então súbitos brilhos, abrindo respiradouros para a vida. A pureza, quando não é um olhar infantil, é uma aprendizagem entre venenos subtis. Raramente se alcança, e quando isso acontece já os nossos olhos estão secos - como poderá tão melindrosa flor abrir no deserto? Por isso estas águas, por mais exíguas, me são tão preciosas."


Eugénio de Andrade

Ainda Sobre A Pureza

"Não gostaria de insistir, mas a beleza dos jovens que se amam é melancólica. Eles não sabem ainda que o desejo de morte é o mais perverso, que só uma coisa os tornaria puros: roubar o fogo e incendiar a cidade."


Eugénio de Andrade
"A claridade coroa-se de cinza, eu sei:
É sempre a tremer que levo o sol à boca."


Eugénio de Andrade

sábado, 14 de julho de 2012

Sílaba Sobre Sílaba

"Aprendo uma gramática de exílio, nas vertentes do silêncio. É uma aprendizagem que requer pernas rijas e mão segura, coisas de que já não me posso gabar, mas embora precárias, sempre as minhas mãos foram animais de paciência, e as pernas, essas ainda vão trepando pelos dias sem ajuda de ninguém. Sem o desembaraço de muitos, mas tirando partido dos variados acidentes da pedra, que conheço bem, lá vou pondo sílaba sobre sílaba. Do nascer ao pôr do sol."


Eugénio de Andrade
"Passamos pelas coisas sem as ver,
Gastos como animais adormecidos.
Se alguém chama por nós não respondemos.
Se alguém nos pede amor não estremecemos.
Como frutos de sombra sem sabor
Vamos caindo ao chão apodrecidos."


Eugénio de Andrade