domingo, 29 de julho de 2012

A Sereia Do Báltico


"Ao fundo de cada uma destas linhas espreita um gato.
Tenho nove anos e vivo no Rossio. Vou amachucando cuidadosamente uma folha de jornal até fazer dela uma bola, passo-lhe à roda um cordel, dou-lhes três ou quatro voltas apertadas, e acabo por deixar uma longa ponta de quase dois metros. É com esta arma no bolso que saio à rua, e raro é o dia em que não regresso com um gato. Não é difícil: 
atiro a bola ao primeiro bicho que descubro e vou puxando o fio. Nenhum resiste. O gato pula, corre atrás da bola, nunca mais pára até que chegamos a casa; então aos mais pequenos, é preciso ajudá-los nas escadas.
Às vezes, minha mãe dá-lhes um pouco de leite, e leva-os depois; outras, se está maldisposta, obriga-me a ir pô-los no sítio onde os encontrei. Não sei como o Bibi escapou. Teria a mãe sido cativada pela sua beleza - era um pequeno tigre de grandes olhos cor de bronze - eu pensaria que, se eu tivesse um gato, perderia aquela mania de trazer para casa todo o maltrapilho? Não sei, a verdade é que foi ficando, e se a relação dele com a mãe nos primeiros tempos não foi feliz, comigo poderia falar-se em idílio: era eu que lhe dava de comer, dormia aos meus pés, conhecia o meu toque de campaínha e, embora tivesse garras e dentes bem afiados, nunca ninguém me viu mordido ou arranhado.
Cresceu muito, e era elegante de seu natural, a cabeça levantada, atenta, como se escutasse qualquer rumor distante.
E não sei de quem melhor soubesse administrar o silêncio.
É preciso dizer que o bicho chegara a casa com maus hábitos. A mãe pusera-lhe um caixote com serradura a um canto da casa de banho para as suas necessidades, mas ele preferia fazê-las na banheira e até no lavatório,
justamente sobre o ralo. Quando ouvia a mãe dizer: "Raios partam o gato!", já sabia o que, mais uma vez, acontecera. Procurava-o a seguir no meu quarto (já disse, creio eu, que o Bibi passava o tempo deitado na minha cama), e levava-o à força com ela. Entre injúrias e palmadas, ouvia o gato bufar e miar, até conseguir escapar-se e meter-se debaixo da minha cama, depois de alguma arranhadela, pois o castigo humilhava-o: a mãe esfregava-lhe invariavelmente o focinho na porcaria que ele depusera, talvez como oferenda, na banheira ou no lavatório. Depois aproximava-se de mim, fazia-me queixa: "Se não gostasse tanto dele, já teria tido o destino dos outros". Eu olhava-lhe a mão arranhada, pegava nela, fazia-lhe uma festa. "Ele também é louco por ti, mas é um porcalhão", insistia. Faço-lhe uma festa, ela sorri, e depois vai à sua vida. Era a minha vez de procurar o Bibi, que se encontrava ainda debaixo da cama: "Vem cá, meu porcalhãozito, ela já se foi embora, já não te bate mais. Anda aqui, minha sereia do Báltico: não há maneira de teres juízo, dá cá a pata". Demorava um pouco a sair, mas depois lá vinha, acabando por dar uma turrinha na mão que o procurava no escuro, consentia que o pusesse no colo, lhe fizesse alguns mimos. Não tardava a correr atrás de mim, por aquele corredor que nunca mais acabava, nunca mais acabava."


Eugénio de Andrade

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