"A memória é a nossa escola da vida. É a nossa única e verdadeira defesa contra a traição e o abandono. Tudo pode ser traído e abandonado, menos a memória. É mais fiel que qualquer amigo, é mais longa que a própria vida, é mais verdadeira do que qualquer verdade que temos como certa. Tal como o Adriano de Yourcenar também eu lamento que a memória da maior parte dos homens seja um cemitério abandonado, onde jazem, sem honra, os que deixámos de amar. Adriano reclamava o direito de chorar, sem fim e sem limites, o seu jovem amado morto. Em sua memória, não em sua honra, espalhou pelos quatro cantos do Império uma profusão de Antinoos, para que a beleza fria do mármore dissesse a todos que o Imperador não esquecia nem cessava a sua dor. A tanto excesso, os seus contemporâneos e, mais tarde, os historiadores, chamariam loucura. Mas Adriano chamava-lhe fidelidade e doía-lhe a incompreensão: " Sinto que à minha volta todos se incomodam com a minha dor. Toda a dor prolongada insulta o seu esquecimento."
Como Adriano, eu quero essa fidelidade. Mais: devo a mim mesmo essa fidelidade. Não posso negar o que vi, o que cheirei, o que senti, o que amei. Não posso negar que fui feliz, se fecho os olhos e sinto outra vez todos os instantes felizes. Não, não posso negar que atravessei rios contigo, que te ensinei o nome das estrelas, que ouvimos juntos os pássaros e o vento nas árvores, que caminhei pelas ruas de mãos dadas contigo e que houve outros momentos que não foram felizes, mas, que, mesmo então e mesmo ao longo dos corredores dos hospitais, havia uma luz ao fundo e essa luz indicava o caminho. Enquanto me lembrar, estarei vivo, porque esse é o mais certo indício de vida. Eu estarei vivo e, vivendo, não deixarei morrer quem caminhou comigo, ao longo do caminho."
Miguel Sousa Tavares
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