segunda-feira, 5 de agosto de 2013

E Ela Dança

"Às vezes, quando a casa estava adormecida à noite, ela dançava pela sala fora, tal qual
como escreveu («bailarina fui mas nunca bailei»). Às vezes, convencia-se que havia ladrões
em casa e acordava-me do sono para espreitar debaixo da minha cama, e às vezes havia
ladrões a sério, com cara de assassinos e crachá da PIDE, que chegavam pela alvorada do
dia, mas verdadeiramente ela não tinha medo dos ladrões nem dos esbirros do «velho
abutre»: só tinha medo de fantasmas.
Naquela casa, aprendemos cedo duas coisas sobre a poesia. A primeira, era que os
poetas eram todos uns personagens extraordinários, que apareciam a horas imprevistas e
diziam coisas surpreendentes. De todos, o mais fantástico era o Ruy Cinatti, que nos
convenceu que era o nosso irmão mais velho, regressado de outra vida em Timor e que
esteve à beira de conseguir transformar-nos em guerrilheiros contra a precária disciplina
familiar.
Vinham e iam constantemente poetas tristes ou alegres, cerimoniosos ou
tumultuosos e até um, o Ruy Belo, que me levava à Luz ver o Benfica e jogava futebol
comigo no jardim.
A segunda coisa sobre poesia que aprendemos é que a poesia é para ser dita e para
ser escutada: é oral, não cabe nos livros. Eu não sabia nada de aritmética, nem de botânica
ou de mineralogia mas, aos dez anos, já tinha aprendido, de ouvido, a recitar sonetos de
Shakespeare em inglês do século XVI, ou o «Erl Kõnig», do Goethe, em alemão. E
quando ela trouxe para casa um disco com poemas do Lorca recitados em espanhol pela
Germaine Montero, ouvi-o tantas, tantas vezes, que fiquei a saber de cor o imenso «Llanto
por Ignácio Sanchez Mejia». À mesa, entre a sopa e  o prato principal, dentro de um
automóvel a caminho do sul ou na missa das 7 da tarde na Igreja da Graça, de repente ela
começava a recitar poesia com a mesma naturalidade com que os outros falavam de coisas
triviais ou respondiam em latim ao «orate, frates!» do padre. Às vezes, naquele terror que as
crianças têm que os pais pareçam estranhos em público, apetecia enfiarmo-nos pelo chão
abaixo quando, à mesa de um café no Chiado, ou numa loja, em plenas compras de Natal,
ou caminhando connosco pela rua de mãos dadas (por  vezes, distraída, perdia-nos), ela
começava a recitar poesia em voz alta, como se o mundo inteiro à sua volta lhe fosse de
repente absolutamente alheio. Um dia, no eléctrico  a caminho de casa, ela fixou-se num
letreiro, por cima de uma janela, que rezava assim: «se alguma janela o incomoda, peça ao
condutor que a feche». E então, no meio daquele silêncio envergonhado dos passageiros,
que fingem não ver e não se ouvir uns aos outros, ecoou a voz dela, clara e silabada,
recitando um poema: «se alguma janela o incomoda, peça ao condutor que a feche e que
nunca mais a abra.»
A mim, todavia, ensinou-me o mais importante de tudo: ensinou-me a olhar.
Ensinou-me a olhar para as coisas e para as pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs. Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para
perceber a consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me a
olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navone, em Roma, sentados num
café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro. Quem ler com atenção, verá que esta é a moral que atravessa toda a sua escrita.
A outra lição decisiva foi a da liberdade. Não só a liberdade física, não só a liberdade
na luta pela justiça, «num sítio tão imperfeito como o mundo», mas ainda a liberdade na
busca de um caminho próprio onde as coisas tenham uma ética e façam sentido e, acima de tudo, a liberdade da nossa própria solidão. Prémios, condecorações, homenagens, são-lhe de tal forma alheios que ninguém mais o entende. Dêem-lhe, sim, silêncio e tempo, manhãs como a «manhã da praça de Lagos» e noites com «jardins invadidos de luar». E ela dançará.
Ao longo das sílabas dos poemas, como dançava na minha infância."


Miguel Sousa Tavares

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